quarta-feira, 31 de dezembro de 2008
"ENCONTRO COM SEBASTIÃO DA GAMA" - I
"Ao falar de poetas que vivem vinte e sete anos é costume começar assim: - "Se tivesse vivido sessenta,setenta anos...". E aquele se mandado adiante justifica,por si só,todo o carácter precário,insuficiente,do encontro que o crítico teve com o artista. Seja lá por que for,esquivou-se a um encontro. Em vez de um poeta que foi,e portanto é,dão-nos um poeta que poderia ter sido. A uma realidade substitui-se um mito....
Um poeta é o que foi. Está aí. É assim. Espectáculo,no mundo da criação poética,para a grande
república das letras. Não podemos lamentar uma rosa lá porque seja a flor de um dia. Se vivesse
mais,poderia ser muitas coisas,mas não seria uma rosa. A morte,por muito imprevista que seja,tem de encarar-se como um facto biológico,e não patológico. Verdadeiramente,não interrompe uma existência,embora a imagem do caule que a mão traiçoeira corta possa ter a sua beleza....
Mas há mais ainda. Se o poeta que morreu em plena mocidade é um poeta autêntico,o encontro com ele tem muitas vezes de ser violento. Podemos pretender esquivar-nos a ele porque,em suma,compromete. A sua arte não chegou a atenuar todas as arestas de uma sinceridade primitiva. O brilho de liberdade ,de força expansiva que há nos olhos do homem que deita o saco do farnel para trás das costas,disposto a empreender jornada,ainda se não viu embaciado pelas disputas em mercados de palavras,pelas mãos côncavas da avareza,pelas convenções de boa vizinhança que encontrará ao longo do caminho.... "
RUY BELO
Na Senda da Poesia
Edição de Maria Jorge Vilar de Figueiredo
Assírio & Alvim
2002
Um poeta é o que foi. Está aí. É assim. Espectáculo,no mundo da criação poética,para a grande
república das letras. Não podemos lamentar uma rosa lá porque seja a flor de um dia. Se vivesse
mais,poderia ser muitas coisas,mas não seria uma rosa. A morte,por muito imprevista que seja,tem de encarar-se como um facto biológico,e não patológico. Verdadeiramente,não interrompe uma existência,embora a imagem do caule que a mão traiçoeira corta possa ter a sua beleza....
Mas há mais ainda. Se o poeta que morreu em plena mocidade é um poeta autêntico,o encontro com ele tem muitas vezes de ser violento. Podemos pretender esquivar-nos a ele porque,em suma,compromete. A sua arte não chegou a atenuar todas as arestas de uma sinceridade primitiva. O brilho de liberdade ,de força expansiva que há nos olhos do homem que deita o saco do farnel para trás das costas,disposto a empreender jornada,ainda se não viu embaciado pelas disputas em mercados de palavras,pelas mãos côncavas da avareza,pelas convenções de boa vizinhança que encontrará ao longo do caminho.... "
RUY BELO
Na Senda da Poesia
Edição de Maria Jorge Vilar de Figueiredo
Assírio & Alvim
2002
terça-feira, 30 de dezembro de 2008
FRUTA DO TEMPO
Andara por todos os mares,cruzando-os vezes sem conta,mas pescara muito pouco. Por isso,ali estava ele,de pele curtida por muito sal,sentado a uma secretária,à entrada de templo rico,a ver se algum peixinho lhe caía na rede.
Era ele o guardião. Tinha muito para guardar,mas só dispunha de dois olhos,e já não via lá muito bem. Ainda há dias voara uma imagem,ali mesmo nas suas barbas.Mas aquilo era gente que parecia ter feito pacto com o demónio. Sabiam bem do seu ofício.
Ele também sabia quem eram,uma família ali das redondezas,uns profissionais. Também estavam interessados nas caixas das esmolas,mas ele não podia estar em todos os cantos.De vez em quando,lá sondavam uma. O que os salvava era ele nunca os ter apanhado com a boca na botija.
Havia por ali à roda muita malandragem. Era fruta do tempo,era o resultado dessas liberdades, com cara de terem vindo para ficar. Por isso,ali estava ele,de pele curtida por sal de muito mar...
Era ele o guardião. Tinha muito para guardar,mas só dispunha de dois olhos,e já não via lá muito bem. Ainda há dias voara uma imagem,ali mesmo nas suas barbas.Mas aquilo era gente que parecia ter feito pacto com o demónio. Sabiam bem do seu ofício.
Ele também sabia quem eram,uma família ali das redondezas,uns profissionais. Também estavam interessados nas caixas das esmolas,mas ele não podia estar em todos os cantos.De vez em quando,lá sondavam uma. O que os salvava era ele nunca os ter apanhado com a boca na botija.
Havia por ali à roda muita malandragem. Era fruta do tempo,era o resultado dessas liberdades, com cara de terem vindo para ficar. Por isso,ali estava ele,de pele curtida por sal de muito mar...
segunda-feira, 29 de dezembro de 2008
PORTAS ABERTAS
Ele era um sim-senhor assumido. É que não se podia incomodar,por mor do coração. Concordava com todos,não fossem pensar que os quisesse contrariar. Era o que faltava. Longe dele uma tal coisa. E não se punha com evasivas,para não restarem dúvidas.
Depois,se assim não procedesse,receava ter neles uns inimigos. Poriam umas caras muito feias e deixariam,até,de lhe falar,cortando relações. E isso,nunca. Sendo ele um pobretana,precisava de se dar bem com todos,cobrindo o maior número possível de frentes,por onde,um dia ou mais,teria de enfrentar um ataque,daqueles de não se saber para onde se voltar. Sem amparos de valia,como havia ele de se livrar de alguma armadilha,que estão sempre a acontecer? Ainda há não muito tempo,lembrava-se muito bem,tivera de recorrer a uma senhora de grande influência para escapar duma,daquelas de fugir a sete pés,tendo para onde.
Tinha,assim,neste temor,neste sobressalto permanente,de manter o maior número de portas abertas,sobretudo,daquelas bem largas,onde se recolher sem hesitações,no caso de alguma borrasca intempestiva.
Com o coração,de facto,não se pode brincar. Se não se tratar bem dele,o fim chegará,quando menos se espera. Há,pois,que lhe dar paz,envolvê-lo em paz. Paz,sempre,de manhã à noite,sem descanso. Era muito ajuizado,sem dúvida,o seu proceder. Se todos fizessem assim,pobretanas ou não,dava-se um grande passo,um passo de gigante,para impedir que guerra germinasse.
Depois,se assim não procedesse,receava ter neles uns inimigos. Poriam umas caras muito feias e deixariam,até,de lhe falar,cortando relações. E isso,nunca. Sendo ele um pobretana,precisava de se dar bem com todos,cobrindo o maior número possível de frentes,por onde,um dia ou mais,teria de enfrentar um ataque,daqueles de não se saber para onde se voltar. Sem amparos de valia,como havia ele de se livrar de alguma armadilha,que estão sempre a acontecer? Ainda há não muito tempo,lembrava-se muito bem,tivera de recorrer a uma senhora de grande influência para escapar duma,daquelas de fugir a sete pés,tendo para onde.
Tinha,assim,neste temor,neste sobressalto permanente,de manter o maior número de portas abertas,sobretudo,daquelas bem largas,onde se recolher sem hesitações,no caso de alguma borrasca intempestiva.
Com o coração,de facto,não se pode brincar. Se não se tratar bem dele,o fim chegará,quando menos se espera. Há,pois,que lhe dar paz,envolvê-lo em paz. Paz,sempre,de manhã à noite,sem descanso. Era muito ajuizado,sem dúvida,o seu proceder. Se todos fizessem assim,pobretanas ou não,dava-se um grande passo,um passo de gigante,para impedir que guerra germinasse.
domingo, 28 de dezembro de 2008
UM PRÉMIO
Não se sabia quem ele era,só se sabia que viera de longe,muito longe. E viera como que trazido por um chamamento imperioso,a que não pudera resistir.
Era um homem muito rico e trouxera consigo uma grande parte da sua grande fortuna,em ouro,em prata,em pedras preciosas,cintilantes,coisas assim. Seria tudo isso para depositar,lá,no fim da longa jornada. Pelo menos,era o que constava,lá,de onde viera.
Mas como é que ele iria imaginar,à partida,que cruzaria com tanta desgraça,se lá, de onde viera,nem um pobrezinho se via? Era capaz de ter enchido mais os alforjes,pois foi muito grande a tristeza que o inundou quando deu com eles vazios.
E a tristeza que o tomara foi tamanha,que,para se livrar dela,adormeceu profundamente. O sonho lindo que ele teve. Nunca sonhara assim,apetecia,até,não acordar mais,depois de ter visto tanta desgraça.
Parecia ser o sonho lindo um prémio pelo que fizera. Depois,lá nesse lindo sonho,ouvia-se,repetidamente,o que ele nunca mais esquecera. Para a outra vez,tens de trazer mais,tens de trazer mais...
Era um homem muito rico e trouxera consigo uma grande parte da sua grande fortuna,em ouro,em prata,em pedras preciosas,cintilantes,coisas assim. Seria tudo isso para depositar,lá,no fim da longa jornada. Pelo menos,era o que constava,lá,de onde viera.
Mas como é que ele iria imaginar,à partida,que cruzaria com tanta desgraça,se lá, de onde viera,nem um pobrezinho se via? Era capaz de ter enchido mais os alforjes,pois foi muito grande a tristeza que o inundou quando deu com eles vazios.
E a tristeza que o tomara foi tamanha,que,para se livrar dela,adormeceu profundamente. O sonho lindo que ele teve. Nunca sonhara assim,apetecia,até,não acordar mais,depois de ter visto tanta desgraça.
Parecia ser o sonho lindo um prémio pelo que fizera. Depois,lá nesse lindo sonho,ouvia-se,repetidamente,o que ele nunca mais esquecera. Para a outra vez,tens de trazer mais,tens de trazer mais...
sábado, 27 de dezembro de 2008
CONVICÇÃO
Coitada dela,vivia de esmolas e morava na rua. À noite,recolhia-se num desvão de prédio. Trazia sempre consigo toda a sua fortuna,acondicionada em sacos de plástico. Um amigo fiel não a largava,um amigo engarrafado,de tinta cor. Pareciam sentinelas,as garrafas que ela depositava,mesmo ali ao alcance das mãos,sempre prontas a acudir-lhe.
Coitada dela,muito ela falava,talvez narrando,em ladainha,a sua triste vida. Dizia-se que era doutora,que tivera vida boa. E por ter sido assim,alguns tinham com ela atenções. E foi o que um dia se presenciou.
Eram dois que dela se abeiraram,movidos por um misto de compaixão e de respeito. Não eram eles doutores,mas um seu equivalente. Não se ouviu bem o que lhe disseram. Mas que se lhe dirigiram com toda a consideração,não restava a mínima dúvida. Muito chegados a ela,quase lhe tocando,merecia o quadro ficar registado,como ficou.
Deram-lhe umas moedas,que seria para qualquer coisa de comer,e não de beber,pois ela era incapaz de assim as gastar,como asseveraram. Ela,uma doutora,não faria uma coisa dessas. Nem repararam nas sentinelas,tal era a sua convicção.
Coitada dela,muito ela falava,talvez narrando,em ladainha,a sua triste vida. Dizia-se que era doutora,que tivera vida boa. E por ter sido assim,alguns tinham com ela atenções. E foi o que um dia se presenciou.
Eram dois que dela se abeiraram,movidos por um misto de compaixão e de respeito. Não eram eles doutores,mas um seu equivalente. Não se ouviu bem o que lhe disseram. Mas que se lhe dirigiram com toda a consideração,não restava a mínima dúvida. Muito chegados a ela,quase lhe tocando,merecia o quadro ficar registado,como ficou.
Deram-lhe umas moedas,que seria para qualquer coisa de comer,e não de beber,pois ela era incapaz de assim as gastar,como asseveraram. Ela,uma doutora,não faria uma coisa dessas. Nem repararam nas sentinelas,tal era a sua convicção.
sexta-feira, 26 de dezembro de 2008
ENTREGUES À BICHARADA
Ainda não há muito tempo,um cartaz,ou lá o que era,fazia-se eco duma realidade de bradar aos céus. E isso pela indicação de um número de arrasar. E acentuava-se lá que esse número não era uma mera indicação estatística,mas sim o revelar de uma tragédia. Cinquenta milhões de almas,pelos vistos,penadas,não dispunham de protecção na saúde.
Passava-se isso num cantinho deste vasto mundo,por sinal,um dos melhores cantinhos dele. O que se poderia dizer,então,se se tivesse em consideração todo esse largo mundo? Uma tragédia ainda maior,uma calamidade,de não deixar dormir sossegadamente todos aqueles que dela estavam livres e que dela tinham conhecimento.
E,afinal,só se estava referindo uma única protecção de um conjunto delas,todas importantes,fundamentais. A calamidade era,assim,muito maior. Mas não é ela só dos tempos que correm,pois vem já de há muitos,muitos anos. Pode dizer-se que as gentes têm feito a sua vida entregues à bicharada,como acontecia nos alvores da aventura humana. Tiveram os ancestrais ,para se livrarem dos inimigos de várias qualidades,de se refugiarem em cavernas e de subir ao topo das árvores.
O tempo que levaram a sair desta sujeição,imprópia da sua dignidade de seres avançados. Uma vergonha. Mas saindo dela,uma maioria esmagadora nunca encontrou protecção que se visse. Quase que se tem visto obrigada a recolher-se em "cavernas" e a, permanentemente ,"trepar" às árvores.
Passava-se isso num cantinho deste vasto mundo,por sinal,um dos melhores cantinhos dele. O que se poderia dizer,então,se se tivesse em consideração todo esse largo mundo? Uma tragédia ainda maior,uma calamidade,de não deixar dormir sossegadamente todos aqueles que dela estavam livres e que dela tinham conhecimento.
E,afinal,só se estava referindo uma única protecção de um conjunto delas,todas importantes,fundamentais. A calamidade era,assim,muito maior. Mas não é ela só dos tempos que correm,pois vem já de há muitos,muitos anos. Pode dizer-se que as gentes têm feito a sua vida entregues à bicharada,como acontecia nos alvores da aventura humana. Tiveram os ancestrais ,para se livrarem dos inimigos de várias qualidades,de se refugiarem em cavernas e de subir ao topo das árvores.
O tempo que levaram a sair desta sujeição,imprópia da sua dignidade de seres avançados. Uma vergonha. Mas saindo dela,uma maioria esmagadora nunca encontrou protecção que se visse. Quase que se tem visto obrigada a recolher-se em "cavernas" e a, permanentemente ,"trepar" às árvores.
quinta-feira, 25 de dezembro de 2008
CONSELHOS DO VENTO NORTE
Liberte-se de si. Corte as amarras,desprenda-se. Olhe em frente,não mais para trás. Esqueça o umbigo. Pense no outro,ao menos. Não tem asas,é certo,mas pode ser que chegue a voar. Quem sabe?Tente,talvez aconteça,que há para aí energias escondidas,ou já nem tanto. O Universo expande-se. Olhe que possível é não estar cá amanhã. E era uma pena não ter experimentado. Tente,ao menos,uma vez. Olhe que quem aconselha por bem,bem lhe quer.
MÃO AMIGA
Ele estava decidido a não ficar de braços cruzados,à espera de que o fruto caísse de podre. Não, ele iria fazer tudo quanto estivesse ao seu alcance,e mesmo para além,se tal fosse necessário,no sentido de evitar que tão trágico acontecimento viesse a acontecer.
Era este um gesto de invulgar dignidade,um estender de mão amiga,a quem,no entender de muitos,e,talvez,também no dele,o não merecia.
Uma grande e de todo inesperada alegria,atendendo aos maldosos procederes correntes,espalhara-se pela Terra inteira,dada a estatura da personalidade que a tal se dispusera.
Finalment,e já não era sem tempo,que muito se tinha escoado para nunca mais,aparecera alguém a apontar o recto caminho. De tricas,de chicanas,de malquerenças,de maus olhado,estava,de facto,o vasto mundo cheio. Era absolutamente necessário,era vital que se pusesse um ponto final a tanta endémica tristeza.
E, porventura,um dia,em retribuição justíssima,um outro alguém lhe havia de estender,
desinteressadamente,a mão,uma mão amiga,de modo a impedir que ele apodrecesse.
Era este um gesto de invulgar dignidade,um estender de mão amiga,a quem,no entender de muitos,e,talvez,também no dele,o não merecia.
Uma grande e de todo inesperada alegria,atendendo aos maldosos procederes correntes,espalhara-se pela Terra inteira,dada a estatura da personalidade que a tal se dispusera.
Finalment,e já não era sem tempo,que muito se tinha escoado para nunca mais,aparecera alguém a apontar o recto caminho. De tricas,de chicanas,de malquerenças,de maus olhado,estava,de facto,o vasto mundo cheio. Era absolutamente necessário,era vital que se pusesse um ponto final a tanta endémica tristeza.
E, porventura,um dia,em retribuição justíssima,um outro alguém lhe havia de estender,
desinteressadamente,a mão,uma mão amiga,de modo a impedir que ele apodrecesse.
quarta-feira, 24 de dezembro de 2008
SEM PALAVRAS
"E palavras como Deus e Morte e Sofrimento e Eternidade devem ser de novo esquecidas. E devemos ser outra vez tão simples e sem palavras como o grão que cresce ou a chuva que cai. Devemos só ser."
A chuva não é,de facto,uma palavra,é chuva. O grão não é,de facto,uma palavra,é grão. Mas para os indicar,são necessárias palavras. E ser,é uma palavra. E são à roda de vinte as palavras que as duas frases encerram.
A chuva não é,de facto,uma palavra,é chuva. O grão não é,de facto,uma palavra,é grão. Mas para os indicar,são necessárias palavras. E ser,é uma palavra. E são à roda de vinte as palavras que as duas frases encerram.
NÚMERO DE TÍTULOS DE AUTORES PORTUGUESES NAS BIBLIOTECAS DAS UNIVERSIDADES DE CAMBRIDGE E DE OXFORD(REINO UNIDO)
Agostinho da Silva 11 e 10
António Sérgio 11 e 65
Anselmo Braamcamp Freire 3 e 14
Carlos Malheiros Dias 2 e 18
Hernani Cidade 23 e 67
Jaime Cortesão 29 e 67
Oliveira Martins 12 e 44
Raúl Proença 2 e 9
Teófilo Braga 27 e 87
Virgínia Rau 10 e 14
António Sérgio 11 e 65
Anselmo Braamcamp Freire 3 e 14
Carlos Malheiros Dias 2 e 18
Hernani Cidade 23 e 67
Jaime Cortesão 29 e 67
Oliveira Martins 12 e 44
Raúl Proença 2 e 9
Teófilo Braga 27 e 87
Virgínia Rau 10 e 14
DIA DE NATAL - IV
Jesus,
o doce Jesus,
o mesmo que nasceu na manjedoura,
veio pôr no sapatinho
do Pedrinho
uma metralhadora.
Que alegria
reinou naquela casa em todo o santo dia!
O Pedrinho,estratègicamente escondido atrás das portas,
fuzilava tudo com devastadoras rajadas
e obrigava as criadas
a caírem no chão como se fossem mortas:
tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.
Já está!
E fazia-as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá
fingiam
que caíam
crivados de balas.
Dia de Confraternização Universal,
dia de Amor,de Paz,de Felicidade,
de Sonhos e Venturas.
É dia de Natal.
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas.
ANTÓNIO GEDEÃO
Poesias Completas
(1956-1967)
7ª edição 1978
Portugália Editora
o doce Jesus,
o mesmo que nasceu na manjedoura,
veio pôr no sapatinho
do Pedrinho
uma metralhadora.
Que alegria
reinou naquela casa em todo o santo dia!
O Pedrinho,estratègicamente escondido atrás das portas,
fuzilava tudo com devastadoras rajadas
e obrigava as criadas
a caírem no chão como se fossem mortas:
tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.
Já está!
E fazia-as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá
fingiam
que caíam
crivados de balas.
Dia de Confraternização Universal,
dia de Amor,de Paz,de Felicidade,
de Sonhos e Venturas.
É dia de Natal.
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas.
ANTÓNIO GEDEÃO
Poesias Completas
(1956-1967)
7ª edição 1978
Portugália Editora
terça-feira, 23 de dezembro de 2008
PARA ONDE IREMOS?
Mais um incêndio em casa velha,casa prestes a desaparecer. Mas enquanto não leva sumiço,lá vai sendo resguardo de algumas famílias.
Pouco passava do meio-dia,de um dia 23 de Dezembro. Vieram os bombeiros e o trânsito foi condicionado,que a artéria é de intenso movimento. Àquela hora de um dia de trabalho,só lá se encontrava um casal,que veio para a rua dar largas ao seu desconsolo. E agora,dizia ela,levando as mãos à cabeça,para onde iremos? Para a apoquentar ainda mais,o seu cãozinho ,muito perturbado,não havia meio de tranquilizar.
A jovem lá acalmou. As coisas haviam de se recompor. Os bombeiros apagariam o fogo,e quando tudo aquilo serenasse,voltariam para a sua casinha. O buraco no telhado,que, entretanto,se fizera,viria a ser tapado,por causa das intempéries. Para a rua é que eles não quereriam ir viver. Teriam,porém,de manter,por algum tempo,as janelas bem abertas,para apressar a secagem,pois os bombeiros não tinham poupado água para dar conta dos focos das chamas.
Como era de prever,houve regresso ao doce lar no mesmo dia. Dava disso clara indicação uma janela iluminada. Para onde é que iriam?
Pouco passava do meio-dia,de um dia 23 de Dezembro. Vieram os bombeiros e o trânsito foi condicionado,que a artéria é de intenso movimento. Àquela hora de um dia de trabalho,só lá se encontrava um casal,que veio para a rua dar largas ao seu desconsolo. E agora,dizia ela,levando as mãos à cabeça,para onde iremos? Para a apoquentar ainda mais,o seu cãozinho ,muito perturbado,não havia meio de tranquilizar.
A jovem lá acalmou. As coisas haviam de se recompor. Os bombeiros apagariam o fogo,e quando tudo aquilo serenasse,voltariam para a sua casinha. O buraco no telhado,que, entretanto,se fizera,viria a ser tapado,por causa das intempéries. Para a rua é que eles não quereriam ir viver. Teriam,porém,de manter,por algum tempo,as janelas bem abertas,para apressar a secagem,pois os bombeiros não tinham poupado água para dar conta dos focos das chamas.
Como era de prever,houve regresso ao doce lar no mesmo dia. Dava disso clara indicação uma janela iluminada. Para onde é que iriam?
DIA DE NATAL - III
Os olhos acorrem,num alvoroço liquefeito,
ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
É como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bençãos e favores.
A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente,mesmo sem querer,entra no estabelecimento
e compra - louvado seja o Senhor! - o que nunca tinha pensado comprar.
Mas a maior felicidade é a da gente pequena.
Naquela véspera santa
a sua comoção é tanta,tanta,tanta,
que nem dorme serena.
Cada menino
abre um olhinho
na noite incerta
para ver se a aurora
já está desperta.
De manhãzinha
salta da cama,
corre à cozinha
mesmo em pijama.
Ah!!!!!!!!!!
Na branda macieza
da matutina luz
aguarda-o a surpresa
do Menino Jesus.
ANTÓNIO GEDEÃO
Poesias Completas
(1956-1967)
7 ª edição
Portugália Editora
1978
ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
É como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bençãos e favores.
A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente,mesmo sem querer,entra no estabelecimento
e compra - louvado seja o Senhor! - o que nunca tinha pensado comprar.
Mas a maior felicidade é a da gente pequena.
Naquela véspera santa
a sua comoção é tanta,tanta,tanta,
que nem dorme serena.
Cada menino
abre um olhinho
na noite incerta
para ver se a aurora
já está desperta.
De manhãzinha
salta da cama,
corre à cozinha
mesmo em pijama.
Ah!!!!!!!!!!
Na branda macieza
da matutina luz
aguarda-o a surpresa
do Menino Jesus.
ANTÓNIO GEDEÃO
Poesias Completas
(1956-1967)
7 ª edição
Portugália Editora
1978
LUGAR AO SOL
Eram aquelas umas bichas algo estranhas. Começavam a formar-se um pouco para lá da meia-noite,por vezes à chuva ou com um frio de rachar,mas também com as duas coisas juntas. Depois,com o correr das horas,chegavam a dar voltas aos quarteirões. E o mais curioso é que a cabeça delas apoiava-se na porta duma estação de correios.
Não se tratava,pois,de bichas para o pão,nem para o que quer que fosse de comer,como acontecera às portas de quartéis,ou para uns cobres,às portas de casas ricas,em épocas remotas.
Aquela gente estava ali,simplesmente,para conseguir lugar ao sol por preço de amigo,pois o dinheiro que eles tinham não dava para luxos.
A selecção era feita pela hora,minuto, talvez segundo,do envio de um telegrama. Assim,por um minuto,talvez segundo,lá se perdia o sonhado poiso,ou mesmo poiso algum,o que era muio pior.
Aquela gente,pois,via-se obrigada a largar o quente da cama muito antes do galo cantar e ir a voar para onde lhes podia sair a sorte grande. Os mais dorminhocos ou os menos lestos arricavam-se a só ter de chuchar no dedo.
Consta que havia almas,almas penadas,que nem se deitavam,a pensar que o despertador não iria cumprir a sua obrigação. A que extremos se tem de chegar quando se quer fazer figura de rico,não passando de uns pobres pelintras.
Não se tratava,pois,de bichas para o pão,nem para o que quer que fosse de comer,como acontecera às portas de quartéis,ou para uns cobres,às portas de casas ricas,em épocas remotas.
Aquela gente estava ali,simplesmente,para conseguir lugar ao sol por preço de amigo,pois o dinheiro que eles tinham não dava para luxos.
A selecção era feita pela hora,minuto, talvez segundo,do envio de um telegrama. Assim,por um minuto,talvez segundo,lá se perdia o sonhado poiso,ou mesmo poiso algum,o que era muio pior.
Aquela gente,pois,via-se obrigada a largar o quente da cama muito antes do galo cantar e ir a voar para onde lhes podia sair a sorte grande. Os mais dorminhocos ou os menos lestos arricavam-se a só ter de chuchar no dedo.
Consta que havia almas,almas penadas,que nem se deitavam,a pensar que o despertador não iria cumprir a sua obrigação. A que extremos se tem de chegar quando se quer fazer figura de rico,não passando de uns pobres pelintras.
segunda-feira, 22 de dezembro de 2008
DIA DE NATAL - II
De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu
e as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)
Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente se acotovela,se multiplica em gestos,esfuziante,
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.
Nas lojas,na luxúria das montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam,sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
as belas coisas inúteis de plástico,de metal,de vidro e de cerâmica.
...
ANTÓNIO GEDEÃO
Poesias Completas
(1956-1967)
7ª edição
Portugália Editora
e as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)
Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente se acotovela,se multiplica em gestos,esfuziante,
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.
Nas lojas,na luxúria das montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam,sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
as belas coisas inúteis de plástico,de metal,de vidro e de cerâmica.
...
ANTÓNIO GEDEÃO
Poesias Completas
(1956-1967)
7ª edição
Portugália Editora
UM ANTILARVA E UM ANTIMETEORITO
O antilarva é para proteger a horta do tio Francisco. É que ele anda muito preocupado com as larvas,que,de ,vez em quando,lhe assaltam as couves. Da última vez,foi uma razia. O que lhe valeu foi ele ter um saco de notas e moedas,lá debaixo do colchão. Com essa fortuna,lá se foi aguentando até a nova plantação lhe dar amparo que se visse. Com os restos,que ele é muito poupadinho,instalou um antilarva. Já devia ter dado esse passo há mais tempo,mas é o costume. Só se apela a Santa Bárbara quando faz trovões.
Quanto ao antimeteorito,meia palavra,nem isso,basta. É que andam por aí,por esses espaços,nos intervalos que a meia dúzia de planetas,estrelas e outros que tais permitem,tantos,tantos,de tantos tamanhos e feitios,que é um caso muito sério,tão sério,que não tem dado para pensar nele.
Ia-se adiando. Mas chegou a altura,e vem já a caminho. É só esperar mais um poucochinho. Não deve tardar. Instalado,vai ser um descanso. Vão ser sonecas,descontraídas como nunca,como se tivesse praticado uma bonita acção. E lá se foi a meia palavra,ou nem isso. É uma pena,mas não havia mais.
Quanto ao antimeteorito,meia palavra,nem isso,basta. É que andam por aí,por esses espaços,nos intervalos que a meia dúzia de planetas,estrelas e outros que tais permitem,tantos,tantos,de tantos tamanhos e feitios,que é um caso muito sério,tão sério,que não tem dado para pensar nele.
Ia-se adiando. Mas chegou a altura,e vem já a caminho. É só esperar mais um poucochinho. Não deve tardar. Instalado,vai ser um descanso. Vão ser sonecas,descontraídas como nunca,como se tivesse praticado uma bonita acção. E lá se foi a meia palavra,ou nem isso. É uma pena,mas não havia mais.
domingo, 21 de dezembro de 2008
DIA DE NATAL - I
Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.
É dia de pensar nos outros - coitadinhos - nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos,mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência,tão efémera e tão séria.
Comove tanta fraternidade unversal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos ,
como se de anjos fosse,
numa toada doce,
de violas e banjos,
entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes,
a voz do locutor
anuncia o melhor dos detergentes.
...
ANTÓNIO GEDEÃO
Poesias Completas
(1956-1967)
7ª edição
Portugália Editora
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.
É dia de pensar nos outros - coitadinhos - nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos,mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência,tão efémera e tão séria.
Comove tanta fraternidade unversal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos ,
como se de anjos fosse,
numa toada doce,
de violas e banjos,
entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes,
a voz do locutor
anuncia o melhor dos detergentes.
...
ANTÓNIO GEDEÃO
Poesias Completas
(1956-1967)
7ª edição
Portugália Editora
ATÉ GOSTEI
Aos anos que ele ali morava,quase quarenta, naquela rua,uma rua comprida. Tinha-a percorrido vezes sem conta,como era de esperar,pois,felizmente,pernas não lhe faltavam,nem olhos para ver . Ver os prédios que a ladeavam,as lojas,os passeios,as árvores,enfim,uma grande parte do que à rua dizia respeito.
Então,não é que há dias deu de caras,pela vez primeira, com duas enfiadas de laranjeiras,uma, em cada passeio,laranjeiras esguias,de porte alto,carregadinhas de laranjas,com ar de estarem maduras? Deviam ser azedas,certamente,à semelhança do que contece em tantas outras ruas.
E quis certificar-se,o que lhe foi fácil,sem ter que ir colher uma,o que seria tarefa complicada,por
as laranjas estarem muito lá em cima,e talvez inconveniente,por razões óbvias. É que acabara de sair de sua casa,mesmo em frente de uma laranjeira,uma senhora com o seu cãozinho,para irem dar uma passeata. Desculpe,minha senhora,pode dizer-me se estas laranjas são azedas?
Olhe que não sei . Mas agora reparo. Ha por aqui mais,que estou a vê-las. Tem graça,nunca tinha dado conta. Mas devem ser,pois já teriam levado sumiço. E riu-se. Peço desculpa,mais uma vez,se importunei. Não importonou nada,até gostei.
Então,não é que há dias deu de caras,pela vez primeira, com duas enfiadas de laranjeiras,uma, em cada passeio,laranjeiras esguias,de porte alto,carregadinhas de laranjas,com ar de estarem maduras? Deviam ser azedas,certamente,à semelhança do que contece em tantas outras ruas.
E quis certificar-se,o que lhe foi fácil,sem ter que ir colher uma,o que seria tarefa complicada,por
as laranjas estarem muito lá em cima,e talvez inconveniente,por razões óbvias. É que acabara de sair de sua casa,mesmo em frente de uma laranjeira,uma senhora com o seu cãozinho,para irem dar uma passeata. Desculpe,minha senhora,pode dizer-me se estas laranjas são azedas?
Olhe que não sei . Mas agora reparo. Ha por aqui mais,que estou a vê-las. Tem graça,nunca tinha dado conta. Mas devem ser,pois já teriam levado sumiço. E riu-se. Peço desculpa,mais uma vez,se importunei. Não importonou nada,até gostei.
sábado, 20 de dezembro de 2008
AMIGOS
Já se não viam há um ror de anos e acabavam de se cruzar lá no cabo do mundo. Ainda bem que te encontro,pois para onde vais aquilo que eu quero é muito mais barato. Aqui pedem um dinheirão. Não sei se nos veremos,quando do teu regresso,mas depois eu procuro-te. O que é preciso é que não te esqueças. Olha que os amigos são para as ocasiões. Se falhares,nunca mais te falo. E pouco mais disse,que estava com muita pressa.
Não se esquecera,mas nada feito,não importa as razões. Dois anos passados,voltaram a cruzar-se. Então,cumpriste? Lá ouviu a resposta,que o deixou muito zangado. Era então assim que se cuidava dos amigos?
Como é bem sabido,alguns só invocam a amizade para receber prendas. Quanto a oferecê-las,não,que isso custa. No que toca à ameaça,ela,a bem dizer,já se tinha concretizado.
Não se esquecera,mas nada feito,não importa as razões. Dois anos passados,voltaram a cruzar-se. Então,cumpriste? Lá ouviu a resposta,que o deixou muito zangado. Era então assim que se cuidava dos amigos?
Como é bem sabido,alguns só invocam a amizade para receber prendas. Quanto a oferecê-las,não,que isso custa. No que toca à ameaça,ela,a bem dizer,já se tinha concretizado.
sexta-feira, 19 de dezembro de 2008
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