domingo, 13 de junho de 2010

FREI GENEBRO

"Súbitamente, porêm, no alto, o prato negro oscilou como a um pêso
inesperado que sôbre êle caísse! E começou a descer, duro, temeroso,
fazendo uma sombra dolente através da celestial claridade. ¿Que Má Acção
de Genebro trazia êle, tam miuda que nem se avistava, tam pesada que
forçava o prato luminoso a subir, remontar ligeiramente como se a
montanha de Boas Acções, que nele transbordavam, fôssem um fumo
mentiroso? Oh! mágoa! oh! desesperança! Os Serafins recuavam, com as
asas trementes. Na alma de Frei Genebro correu um arrepio imenso de
terror. O negro prato descia, firme, inexorável, com as cordas retêsas.
E na região que se cavava sob os pés do Anjo, cinzenta, de inconsolável
tristeza, uma massa de sombra, molemente e sem rumor, arfou, cresceu,
rolou, como a onda duma maré devoradora.

O prato, mais triste que a noite, parára--parára em pavoroso equilíbrio
com o prato que rebrilhava. E os Serafins, Genebro, o Anjo que o
trouxera, descobriram, no fundo daquele prato que inutilizava um Santo,
um porco, um pobre porquinho com uma perna bárbaramente cortada,
arquejando, a morrer, numa pôça de sangue... O animal mutilado pesava
tanto na balança da justiça como a montanha luminosa de virtudes perfeitas!

Então, das alturas, surgiu uma vasta mão, abrindo os dedos que
faiscavam. Era a mão de Deus, a sua mão direita, que aparecera a Genebro
na escada de Santa Maria dos Anjos, e que agora supremamente se estendia
para o acolher ou para o repelir. Toda a luz e toda a sombra, desde o
Paraíso fulgente ao Purgatório crepuscular, se contraíram num
recolhimento de inexprimível amor e terror. E na estática mudez, a
vasta mão, através das alturas, lançou um gesto que repelia...

Então o Anjo, baixando a face compadecida, alargou os braços e deixou
caír, na escuridão do Purgatório, a alma de Frei Genebro."

Um excerto de
Frei Genebro
Contos
EÇA DE QUEIRÓS
Projecto Gutenberg

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